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Caleidoscópio sem alma

Enquanto passava por um ponto de ônibus, reparei sem querer uma conversa que me fez segurar meus passos largos e rápidos costumeiros. “Naquele tempo era bom, podia-se fazer piadas sobre negros e gays e ninguém ligava”, dizia uma pessoa com a voz mais alta, como que se quisesse se fazer num palanque as boas novas que trazia ao mundo. “Pois é, mas agora tudo é essa frescura”, dizia um sujeito mais contido, mas não menos agressivo, um pouco antes de se despedir com: “Deus abençoe, irmão!”.

À distância, acompanhei as duas pessoas se transformarem, de um ritmo de deboche a um rito de celebração, pois enfim é assim que fazem todos os dias quando as suas ideias são atendidas. Sim, as pessoas se transformam em seu dia-a-dia, seja numa posse ou num cargo, num elogio bem colocado, e não por vezes, falso, e nem sempre se goza da discrição e da boa intenção das relações, que deveria ser a constante.

Nos últimos 04 anos, a ironia foi se fazer público qualquer colocação, mesmo as mais absurdas, sob licença de uma liberdade incondicional. Não se trata de Liberdade de Expressão amplamente defendida como pressuposto de uma Democracia, mas sobre o que isso significa e os direitos e deveres alienados a essa. Liberdade de Expressão não é Crime, Crime não é Liberdade de Expressão.

Amparado no poder, discursos oficiais se fizeram as pencas, criando celeumas diárias desnecessárias, parecendo cada vez mais afrontar, do que apenas uma retórica com finalidade específica. De certo, cada insano que existia e vivia por aí, em conversas desnecessárias e vazias, sem importância, ganhou uma representação oficial, e de repente, verificou-se que são muitos.

O diálogo daquele ponto de ônibus do início desse texto me mostra que o afeto escorre ao ralo, passando por um esgoto encanado sob aqueles pés, ilumina os trajetos daqueles dois, que tem em suas falas as palavras incontestes do que é correto, pelo menos é o que pressupõem em suas intimidades. Sim, sentem-se iluminados por serem representados. No fundo, as palavras apenas decoram a sujeira das verdadeiras intenções do particular. O fedor e o descaso com as virtudes mais básicas se tornam uma constante, e paulatinamente, as garras se eriçam, os dentes se avolumam e os uivos se ouvem ao longe, sem ao menos precisar de alguma Lua cheia para essas transformações grosseiras.

As consciências desses estão límpidas pela certeza fiel de suas crenças, o que torna suas vidas bem simples: basta uma reza e mais uma promessa e já se é bom de novo, com o poder nefasto aflorado pela continuidade e uma leveza típica de quem imagina fazer uma luta diária. É triste que o ser humano em plena Era da Inteligência Artificial nutre conceitos tão primitivos e nada inteligentes.

“Deus abençoe, irmão”. Termina assim, com uma simples fala santificada e vazia, expondo um ente que denota infinito Amor. Nesse sentido, todo o desejo de mal pode ser permitido pela licença divina, e eu que não queria escutar e que abomino situações assim, lamentei que meus passos largos e rápidos mudaram o compasso e essa reflexão acima pôde ser lançada, à medida em que pensava. De repente, na próxima coluna, esteja menos atento ao vil e procure mais uma boa rima, pois a beleza é o nosso antídoto

Publicado em:Crônicas,Entretenimento,O Sujeito Oculto

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