A um comando do pastor ouviu-se um burburinho. O caminhãozinho – versão mini de um guincho para carros, parou de ré na porta da sala, mantendo o devido silêncio. Como é que estes caminhõezinhos de cemitério rodam sem barulho? Se conseguem fazer um motorzinho silencioso, por que não tentam com um grande?
Bem, hora de se perfilarem os que levariam o caixão até a caçamba do guincho-miniatura. Uns quatro passos…. Só para marcar, simbolizar, solenizar, sem fazer força. Coisas do mundo moderno.
Seu Carneiro assumiu a alça dianteira esquerda – à esquerda do morto, portanto ele (Seu Carneiro) usaria a mão direita. Italozinho veio logo depois, para a alça dianteira do outro lado e olhou para seu Carneiro de olhos semicerrados e queixo erguido.
Ocorre que o Italozinho – sobrinho do morto e até seis meses atrás sobrinho por afinidade de Seu Carneiro (casado com a tia de Italozinho que por sua vez era irmã do morto e de Italo, falecido pai de Italozinho) – havia subtraído, por assim dizer, dinheiro em espécie do caixa da loja de Seu Carneiro, que o empregara a pedido da família.
Nada ficara provado em que pesasse a fama e até a ficha policial de Italozinho, cujo pai, o já citado e já falecido irmão do morto, morrera de desgosto logo na primeira prisão do filho, o qual em sua defesa dizia ter sido um infarto posto que desgosto não mata ninguém – isto obviamente sob sua ótica, sem contar que foi um óbito inútil já que a prisão durou dois dias.
Provado ou não, Seu Carneiro disse em alto e bom som para quem ali naquela sala de velório que concentrava todo calor e abafamento do mundo pudesse ouvir:
“Eu não carrego caixão junto com ladrão”
Fez-se, ato contínuo, um “ooooh!”, e aqui cumpre sublinhar uma colocação: quem em sã consciência carrega caixões ao lado de um ladrão? Ora, pode-se dizer, um velório é sempre um local de redenção, mesmo aquele velório, em cuja sala o vento se recusava a entrar, vento este que nem mesmo teve a generosidade de mandar uma nesga, um sopro que mitigasse a sensação de se estar à boca de um fogão à lenha.
Obtempera-se facilmente ante a esta afirmação, que a redenção, se é que existe, é franqueada ao defunto. De tal sorte que Italozinho ali não fora absolvido pelo tio, talvez por nenhum dos presentes, talvez o fosse apenas no seu próprio enterro.
Exagero… o morto, seu tio, o absolveu ainda em vida. Tinham uma ligação paternal desde que nascera, e diziam que o falecido tio conseguia mimá-lo ainda mais que o falecido pai. Sua mãe sempre o repreendera, nunca se prestou a sequer relevar suas ações inicialmente traquinas mas depois cada vez mais perniciosas.
Apenas seu tio, que o defendera de surras na rua e em festas de família era seu porto seguro diante da hostilidade do mundo. Talvez por isso ele se posicionara de forma tão acintosa ao lado de Seu Carneiro, esquecendo-se de que ali só restava a carcaça do tio sem vida para defendê-lo nem da sanha do pastor que, esbaforido, já sem o paletó, com a camisa coalhada em suor e fazendo a gravata de lenço, encaminhou-o para a alça contralateral à que era guardada por Seu Carneiro, qual seja, a última do lado direito do falecido tio, junto à cabeça.
Achegou-se ao caixão Heleninha, filha mais velha da irmã mais velha do morto. Eram cinco irmãos: a mãe de Heleninha, seguida por Ítalo, já citado e morto assim como a mãe de Heleninha; a esposa de Seu Carneiro, que estava viva e tentava segurar uns arrotos que teimavam em vir após ter tomado uma tubaína para espantar o calor; o morto e finalmente Nicésia, a qual tinham esperado até aquele momento, naquelas condições de calor mormacento, de falta de um ventilador e de uma infeliz ideia de se servir um chá de erva-doce que parecia ter saído de uma caldeira do inferno fazendo os presentes queimarem por dentro e por fora. Ela ainda estava chegando da Capital. Porém, pelo exposto acima corria o risco de topar apenas com a lápide do irmão, o que seria inclusive um golpe de sorte, dado que se salvaria daquele calor abraçador de corpos. Enfim, Heleninha tentou assumir a alça do lado esquerdo da cabeça do tio falecido, ao lado portanto de Italozinho.
Mas Heleninha era uma sílfide, mal podia consigo mesma, quanto mais com aquela alça. Talvez ela soubesse disso desde o início e sua aproximação solene (ela chegou a empunhar a alça) talvez tenha sido a forma de introduzir finalmente na família sua namorada, Geórgia, saudada com um jovial “e aí, Jorjão!” de Italozinho ao substituir a consorte no posto diante da alça.
Seu Carneiro olhou para trás com cara de desaprovação – era de nojo mesmo, vamos combinar – e ainda tentou trocar olhares com o Pastor mas sentiu que não podia ganhar todas, dado que já repelira Italozinho. Ele, em sua inteligência de estrategista de negócios, deve ter mesmo percebido que Heleninha escolhera cuidadosamente após seu jogo de cena posicionar Geórgia bem atrás dele.
Entre os dois, portanto fechando o cortejo do lado esquerdo das alças, encaixou-se o filho mais velho do morto. Olhando sempre para baixo, Quinta – como era por todos chamado por nunca ter conseguido passar da quinta série – via pingar de seu rosto tanto suor como lágrimas. Mas era um choro silencioso. Ele sequer suspirava ou dava indícios de nariz cheio.
Enfim, chorava ali como sempre chorara durante as inúmeras, milhares de surras que levou do pai nas inúmeras, milhares de vezes em que sofreu um revés por conta de sua pouca inteligência. Chegava sempre nas festas de família com hematomas e ali no velório chegou num ar compungido, olhando sempre para baixo. Talvez estivesse a perdoar o pai, talvez estivesse a esperar o perdão dele até hoje e ali estava a perdoá-lo por partir sem o perdoar, e nestes pedaços de pensamentos e sentimentos ele se perdia como sempre.
Ao lado de Seu Carneiro postou-se o genro do morto. Professor da rede municipal e estadual de ensino, muito trabalhador, lecionava de manhã, de tarde e de noite como era do jaez dos professores da rede pública, o que por si só já denotaria uma explicação para uma das chagas desta nação que é o flagelo da educação pública.
Tal chaga não era no entanto a maior das que o envolvia. O estresse da vida estafante cometeu a crueldade de espalhar pelo seu corpo lesões de psoríase, fazendo com que ele sempre andasse de mangas compridas e colarinho fechado. A misericórdia divina fez-se presente, e Deus é grande, na forma do pouco suor que exalava.
Parecia que ele estava numa região de clima temperado, ou mesmo fria, posto que mantinha a camisa impecavelmente seca. Por outro lado, a rotina corrida e a pele repugnante fizeram com que sua esposa tivesse que se valer de outros braços não cobertos por panos ou crostas reptilianas para se contentar como mulher, o que era sabido por toda a cidade e certamente por ele mesmo.
Atrás do Professor, na alça do meio do lado direito do morto, assumiu o amigo de infância, Zé Patrola, assim chamado por operar todas as máquinas automotivas da prefeitura – tratores, escavadeiras, motoniveladoras e até o caminhão de lixo (antes da coleta ter sido terceirizada). A atração da criançada era vê-lo trabalhar e aferir o grau de intoxicação etílica que ele apresentava no momento, percebido por movimentos bizarros dos tratores. Naquele momento brindava a todos com um inequívoco olor de cerveja, no que era perdoado, uma vez que o desejo de todos ali, até dos que não bebiam, era tomar uma gelada.
Completo o time que levaria o caixão tínhamos, recapitulando: à esquerda, de frente para trás, Seu Carneiro, Quinta e Geórgia. Do outro lado, seguindo a mesma ordem, tínhamos o professor Bento Góia (maldosamente chamado de Bento “Gáia” pelas costas), Zé Patrola e Italozinho.
O moço do cemitério ordenou:
“Senhores, senhora, vamos contar ‘três, dois, um’ e levantamos todos juntos no “um”, certo?”
Todos balançaram a cabeça, menos Quinta, o que gerou uma pergunta de Italozinho:
“Tendeu nada, né Quinta?”
A reposta veio no ato…
“Vai se ferrar, ladrão!”
O Pastor de um lado e a viúva, mãe de Quinta, do outro apaziguaram o começo da briga. O chefe dos coveiros, ignorando aquela desinteligência falou quase gritando “vamo lá, gente”. E comandou, sendo seguido por todos “Trêsdoisum” e fez o gesto de levantar as alças no que foi seguido por todos, direitinho, sincronizadinho até que Italozinho gritou;
“Pâuta gue baréééoo!”
Ele fitava o rosto sem vida do tio ao mesmo tempo em que percebia uma cascata de pétalas caindo pelo chão, o que passado o pasmo foi percebido por todos. O Pastor gritou:
“Tampem essa porra logo!!”
O que se deu foi que, ao tentar erguer o caixão, acabaram por descolar a parte que compreendia o tampo e as laterais onde se fixavam as alças. Por um átimo, o morto ficou exposto numa cena inesperada e viu-se que ele suava – ou passava por um outro fenômeno – bem mais do que quando era vivo.
Mas ante à ordem do Pastor, e especialmente assustados com o palavrão por ele desferido, os “carregadores” houveram por bem tampar aquela porra logo.
Após tampar, olhavam o caixão desconfigurado, do qual uma pétala ou outra teimava em cair. Foi quando escutaram um toc-toc-toc e sentiram cheiro de perfume muito caro. Era Nicésia, com seu indefectível salto, já gritando da entrada:
“Gente… desculpa, mas vamo! Vaaamo que já cheguei!!”
Quando ela se aproximou do caixão, descanchelado daquele jeito, ela fez uma cara. Nicésia fazia caras, e todo mundo sabia o que ela estava pensando, sempre, por mais nova que fosse a expressão dela.
No caso, a cara dela não tinha nada com o caixão. E antes de olhar de novo aquela cena bisonha, fitou todos nos olhos, incriminando a todos que de alguma maneira tinham culpa sim.
Por fim deitou os olhos no caixão e sutilmente mudou a expressão, que até Quinta entendeu o que significava. Ela dizia silenciosamente com todos os músculos da face…
“O que será que este filho da puta fez com o dinheiro que eu mandei para ele fazer a merda da bariátrica?”