Tio Custódio veio a São Paulo fazer uns exames. Bem poderiam ser feitos em Uberlândia, ou em São José do Rio Preto, mas no fundo a gente entendeu que Tio Totó queria mesmo era conhecer Sampa.
Já na rodoviária, depois de me dar a bênção e me estender sua mala para que eu carregasse, mostrou seu delicioso azedume: “Tá um solão aqui, sô!”. Eram apenas sete da manhã. Eu não havia entendido mas procurei amenizar: “Mas aqui não faz tanto calor não, Tio!“
Ele esclareceu, meio bravo: “Uai, mas não diz que o céu daqui é cinza? Quede o cinza?”
No caminho para minha casa eu o olhava de soslaio e via seus olhos vívidos. Não se deixaria vencer pelo deslumbramento. São Paulo oprime ao mesmo tempo que acolhe. Assusta ao mesmo tempo que cativa. É feia mas é bonita. Perguntei para quebrar o gelo: “O senhor quer que eu passe em algum lugar antes de chegarmos em casa?”. Surgiu um pequeno brilho em seu olhar… “Pode?”. “Claro que pode, Tio!”. Ele pensou um pouquinho e perguntou encabulado: “O Pacaembu?”
Vixe… ia bagunçar minha rota. Mas era o Tio Totó. Rumamos para o estádio. aramos na praça, descemos do carro. Ele ficou extasiado olhando as colunas do pórtico de entrada.
Devagarinho e quase sem perceber, foi girando e olhando as redondezas, a avenida, as construções, o trânsito. Até que pediu para que tirasse uma foto dele.
Eram tempos onde os celulares eram apenas telefones, grandes e pesados. As fotos só nas máquinas mesmo. Ele escolheu o lugar e determinou minha distância. Bati a foto, que ele ostentou num porta-retrato no seu quarto por todo restinho de sua vida.
Feitos os exames, uns dois dias depois já se preparava para voltar. Pelo correr da agenda ele estava exausto. Dormiu a tarde toda, e achei que fosse pela noite, quando chegou na sala de banho tomado e roupa de missa. Olhei todo aquele aprumo e perguntei pasmo: “Ué, para onde vamos?”. Ele sorriu e simplesmente disse: “Passear!”. “Mas são quase meia-noite, Tio Totó!”. “Uai… Mas não diz que essa cidade não dorme? Quero só ver!“.
Saímos pela Pauliceia entrando pela madrugada. Ele sério, olhava tudo. Resolvi provocar… “Tá vendo, Tio? Um monte de farmácia aberta!”. Ele fez um muxoxo… “Que nem o Gilmar. É só acordar ele.”
Seu Gilmar era o dono da única farmácia da cidade. Realmente, a qualquer hora da noite bastava tocar a campainha e esperar que ele descia, abria uma fresta na porta e perguntava não muito delicadamente: “Que é?” E aí a pessoa falava o remédio que precisava ou pedia uma indicação “O que o senhor tem para azia?”.
O lado bom é que podia pagar no outro dia. Ele nem dava um vale nem nada. Era na confiança mesmo. O problema era que seu Gilmar já andava pelos oitenta e trazia o remédio que lhe desse na já confusa telha. Era uma loteria, mas na maioria nas vezes ele acertava. Até porque ai do freguês se dissesse que o remédio estava errado.
Passamos por uma Igreja Evangélica em pleno culto. Não me contive: “Isso aí não tem lá de madrugada!”. Meu tio não se abalou… “Tem a Záida.”.
A dona Záida era uma quituteira que organizava novenas, vivia com um terço na mão. Mas era também benzedeira. De fato as pessoas poderiam pedir seus serviços a qualquer hora da madrugada.
Sua especialidade eram cólicas de bebê e dores de dente. Mas nessas horas ela acorria na casa do freguês com um maço de folhas de arruda em vez do terço e durante o ritual se balançava toda e era um tal de “zifío” pra cá, “zifia” pra lá… Mas gente de todos os credos a chamava, até os ateus.
Foi quando Tio Totó capitulou… “Tô com fome. Quê que tá aberto agora?” Me animei: “Tem para todo gosto. O senhor escolhe o que quer comer e eu te levo lá!” Ele deu na lata: “Bife à parmegiana?”. Rebati de pronto… “Claro, é para já!”.
O Sujinho não estava tão cheio. Pedimos o bife, cerveja, tudo liberado. Tio Totó foi soltando a língua e a gente ria dos casos. Eu era seu sobrinho mais novo, ele parecia ainda estranhar que eu era adulto. E eu parecia estranhar que havia crescido. Talvez por isso, em nossas reminiscências não citamos o Virbári.
O Virbári era um bar que só abria de madrugada, e essa nem era sua principal peculiaridade. Ele abria depois que a Zona fechava. Daí todos, inclusive as profissionais, iam para lá. Cerveja gelada, cachaça de alambique e o único item do cardápio: bife à parmegiana.
Não adiantava pedir outra coisa. Seu Loiola, dono do estabelecimento, um show à parte. Ele recebia a todos muito jovialmente e saudava a freguesia enquanto se sentavam num caloroso “Boa noite, virbári!”. Alguns mais desatentos respondiam “Boa noite virbári!” de volta, no que todos riam até que se percebesse que seu Loiola queria saudar a “todo mundo” ou everybody no seu inglês caipira.
O Virbári era como uma Las Vegas da roça. O que lá acontecia de lá não saía. Ainda havia o código de ética, jamais quebrado, de não se achegar às moças de fino trato que lá dividiam as mesas conosco – sim eu fui lá umas vezes, mas isso cá entre nós.
Mas Tio Totó nem devia fazer ideia disso, da mesma forma que imaginava que eu não imaginava que ele fosse um frequentador contumaz.
Já no carro, prestes a voltar para casa, perguntei a ele: “Gostou, Tio?”.
Ele baixou a cabeça e disse rindo… “Gostei sim. Faltou só as puta!”.