O problema da segunda Marcha da Família(*), convocada para o próximo dia 22 de março, nem é emular a primeira. Dependendo do ângulo que se olha, em 64 tínhamos também uma nulidade na presidência, a economia patinava e algumas ideias, por assim dizer, revolucionárias, ganhavam força em setores-chave do país. A reação na forma da Marcha foi uma resposta de pessoas angustiadas com a bagunça reinante, a corrupção irrefreável, a falta de um projeto decente de país.
A melhor resposta para a pergunta “por que enfrentamos estes mesmos problemas cinquenta anos depois?” seria com certeza “porque queremos resolvê-los da mesma forma, cinquenta anos depois”. Considerar uma intervenção militar, mesmo que de longe, mesmo que só uma intervenção – Castello Branco imaginava estar assumindo um governo interino, a ser “devolvido” em pouco tempo a um civil – revela não uma fixação suicida por ditaduras, mas um movimento de terceirizar uma ação que tem que ser nossa.
Ainda estamos no tempo em que a democracia precisa ser defendida na espada. As democracias mais estáveis se baseiam em Instituições. Uma Instituição é qualquer coisa, lugar ou momento em que temos oportunidade de exercer nossa cidadania, garantindo a liberdade de expressão de quem discordamos e entendendo que além de nossos direitos temos que observar o cumprimento de nossos deveres. Uma sala de aula é uma Instituição, o local de trabalho também, assim como o Congresso Nacional. Quando as Instituições funcionam, a democracia fica quase que naturalmente resguardada. Eleições nunca garantiram por si só uma democracia. Na nossa ditadura as tivemos. A Coréia do Norte faz eleições regularmente, assim como Hitler chegou ao poder por meio do voto.
A chamada “ordem democrática” se constrói no cotidiano. Pode ser que dê trabalho, mas uma ditadura dá muito mais. Desejar a volta de militares para que disciplinem o funcionamento do país é reconhecer nosso fracasso enquanto cidadãos.
Se estamos insatisfeitos com “tudo que está aí”, há diversos modos além do voto de mudar o estado das coisas. O silêncio da presidente Dilma em relação aos protestos na Venezuela só mostra o medo da onda chegar aqui – e não me venham com o junho/julho do ano passado. Aquilo era só pelos vinte centavos sim. Vamos à luta se for preciso, não para derrubar governos mas para fortalecer as Instituições.
Dá para exigir um judiciário mais dinâmico, um trânsito mais solidário, um legislativo menos calhorda, sindicatos menos cínicos, licitações e gastos mais abertos à fiscalização. Uma boa forma de começar com tudo isso é cumprindo as leis, sendo mais solidário ao dirigir o próprio carro, acompanhando o político em que votou, cumprindo com nossos deveres profissionais para então exigir melhores condições de trabalho e visitar sites que tratam de contas públicas. Trocar tudo isso por um governo militar é mostra de deseducação e preguiça.
Eric Hobsbawm, um historiador marxista foi uma vez perguntado se a causa valeria o morticínio de 30 milhões de soviéticos, promovido por Stálin. Ele respondeu simplesmente “sim”. Não sei de vocês, mas eu não acho viável confiar em quem esteja disposto a matar por uma causa. Se queremos uma mudança contundente teremos nós mesmos que nos lançar à luta, com disciplina, ordem, senso de dever e patriotismo.
E aí? Precisa mesmo dum sargento gritar no seu ouvido para que você assuma essa postura?
(*) Nota do Editor: a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi o nome comum de uma série de manifestações públicas ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964 no Brasil em resposta à “ameaça comunista” representada pelo discurso em comício realizado pelo então presidente João Goulart em 13 de março daquele mesmo ano. (veja na Wikipedia). Está sendo divulgada na imprensa a reedição da marcha.