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O pequeno Igor

O plantão seguia corrido naquele pronto-socorro de hospital público de periferia. Gente tentando fazer o máximo de si mas sendo contestada o tempo todo. Gente fazendo corpo mole e sendo contestada também, menos por si mesma – o que faz toda a diferença. Pacientes e familiares gritando impropérios, principalmente o tautológico “vou precisar morrer para ser atendido?”, sem se tocar que uma vez morto, o atendimento se faz dispensado.

E em meio a este barulho, eu. Atendia a casos da clínica médica e estava no consultório orientando um paciente, quando um menino de seus sete, oito anos acorreu à porta:

“O senhor pode ver meu pai?”

Esse tipo de pedido acontece aos borbotões em cada plantão. Mas nunca feito por uma criança. Adiantei que teria que terminar com aquele paciente da sala, e que depois iria.

“Mas meu pai está sentido muita dor!”

Como já esperava a insistência, a única surpresa que tive foi a de que aprendiam cedo. Continuei a conversa:

“Como é seu nome?”

“Igor”

“Pois é, Igor, dá só um tempinho que prometo que vou ver seu pai. Se eu sair agora, o moço aqui vai ficar bravo!”

Igor assentiu e saiu dali. 

Terminei a consulta alguns poucos minutos depois e saí da sala, quando senti, após alguns passos, alguém do meu lado.

“O senhor prometeu ir ver o meu pai.”

“Tem razão, Igor, como ele se chama?”

A ficha com o nome do pai dele não se encontrava na caixa das que esperavam por atendimento. Perguntei à secretária, que disse ser um caso para a ortopedia, visto que se tratava de fraturas múltiplas. Por razões que não vem ao caso aqui – até porque eu não saberia explicá-las – os ortopedistas estavam todos fora dali, em cirurgia, naquele momento. Maquinalmente, dei a satisfação ao menino.

“Olha, Igor, seu pai quebrou alguns ossos. Ele precisa que o doutor dos ossos o veja. Eu não sou o doutor dos ossos, entendeu?”

“Entendi.”

E fez uma cara de desapontado e olhou pro chão. Virou os olhos para mim e perguntou…

“Mas quem é o doutor que tira dor? Porque meu pai está com muita dor…”

Esbofeteado pela pergunta, só me restou pegar a ficha na caixa da ortopedia e acompanhar Igor.

Ele me mostrou um homem que aparentava quase cinquenta anos, ainda que a ficha lhe desse a idade de trinta e poucos. Estava em andrajos, sujo e malcheiroso, deitado em três cadeiras de plástico encostadas que serviam de cama. Os olhos injetados, a testa sudoreica, a respiração ofegante e o tremor por todo o corpo não deixavam dúvida do uso abusivo do álcool. Tentei confirmar com Igor:

“Esse é seu pai?”

“Sim. É meu pai.”

E o menino me lançou pela primeira vez um olhar de revolta. Não satisfeito, continuei…

“Você mora com ele?”

“Moro. Ele é que não mora muito comigo.”

E respondeu com a mais absoluta das serenidades, como se respondesse que a cor do céu é azul. Insisti…

“Ele chegou em casa assim?”

“Não. Um amigo meu veio me avisar que ele estava apanhando na rua porque tinha mexido com mulher dos outros. Eu fui pra rua e vi ele deitado na frente do bar. Tinham batido nele com pau. Ele foi andando comigo até em casa e eu chamei o Samu.”

“E como você fez para ligar?”

“Do telefone da minha tia.”

“Você mora com sua tia também?”

“Não, ela mora no mesmo quintal.”

“E cadê sua tia, Igor?”

Ele baixou a cabeça nesse momento e não a erguia por nada. Perguntei de sua mãe e ele ficou cabisbaixo, firme, sem nada responder. Achei por bem parar por ali.

“Bom, Igor, nós vamos tirar a dor do seu pai, está bem? Vai dar tudo certo, e quando o doutor dos ossos chegar seu pai estará bem melhor!”

Igor fez um sinal de “sim” com a cabeça e sem me fitar sentou-se numa das cadeiras ocupadas pelo pai, colocando a cabeça no seu colo. Avisei a enfermagem da medicação e voltei aos atendimentos.

Algo como duas horas depois, apareceu o ortopedista. Fiquei contente em vê-lo, mas não vi Igor. Meia hora depois ele estava em minha porta. Eu estava digitando pedidos de exames e ele se mantinha estático a me olhar.

“Igor, o que o doutor dos ossos te disse?”

“Ele não viu meu pai.”

“Como não? Ele acabou de passar por aqui!”

E continuei digitando… Igor continuava na porta do consultório sem se mover. Levantei-me e de pronto descobri o erro: como eu havia prescrito o analgésico, a ficha foi parar na minha caixa como se fosse um retorno. Quando o ortopedista passou por lá, obviamente não havia nada do pai de Igor em sua caixa, e ele foi embora novamente.

Avisei à recepcionista do ocorrido, com a rispidez necessária para que Igor percebesse o fato. Mostrando desolação, contei ao menino:

“Igor, a gente vai ter que esperar o doutor dos ossos voltar. Ele veio, mas a ficha do seu pai não estava na caixinha dele, sabe? Então agora eu a coloquei e quando ele vier, vai dar tudo certo!”

Ele ficou me olhando fixamente, sem expressão no rosto. Entrei na sala para chamar outro paciente e Igor entrou atrás. Foi incisivo:

“O ortopedista foi embora por erro de vocês. Tem que chamar ele pra voltar logo!”

Olhei para ele intrigado. Ora, quem foi que disse a ele que o nome do doutor dos ossos era ortopedista? E quem disse que eu errei?

“Igor, logo o ortopedista volta. Agora eu preciso que você espere lá fora. Eu preciso atender.”

E o menino não saiu da sala… Restou-me levantar de onde estava.

“Tá bom, Igor, foi erro nosso. Eu vou chamar o ortopedista. Você me espere aqui, certo?”

Atravessei o recinto e cheguei aos elevadores. Entrei num deles e quando a porta estava para fechar, uma mãozinha a pouco mais de um metro acima do chão barrou o fechamento. Igor entrou me olhando com aquele rosto firme já familiar. Chegamos no andar e achei o colega ortopedista. Expliquei o caso para ele e o apresentei a Igor, que por sua vez não esboçou reação nem quando recebeu dele um carinho na cabeça.

Descemos e me dirigi à sala. Alguns minutos depois uma enfermeira interrompeu e me perguntou se eu conhecia um menino que dizia ter um pai com ossos quebrados. O problema é que esse menino resolveu se postar na frente da caixa da ortopedia. Nada o tirava dali e um segurança estava começando a erguer o tom da voz. Eu disse a todos que o menino continuaria ali e que eu me responsabilizaria.

Muitos minutos depois escuto de dentro do consultório um barulho de gritos. Olho para fora e vejo todo mundo, desde a recepcionista, o segurança, passando pelo pessoal de enfermagem e até alguns pacientes, todos apontando vivamente para Igor. Saí da sala e vi o ortopedista retirando a ficha que finalmente estava na sua caixa. Ele falava com Igor, que lhe respondia com os olhinhos vivazes e piscantes. Vi os dois indo em direção ao pai do garoto.

Dali a pouco, ouço uma forte batida na porta. Era Igor, mas desta vez sorria. Atrás dele estava seu pai em uma cadeira de rodas, de banho tomado, roupa de hospital e braço enfaixado. Sorri para Igor, que me sorriu também e me fez com a mão um sinal de positivo. Respondi sorrindo, retribuindo o “jóia” com a mão.

No meio da madrugada, as coisas amenizaram e resolvi subir à enfermaria de ortopedia. Não foi difícil divisar em meio ao emaranhado da ala, um menino encolhido numa poltrona do lado de uma cama onde um homem se debatia vagarosamente. Cheguei mais perto, e vi que o pai de Igor tentava se livrar de um lençol, mas o corpo trêmulo e o braço enfaixado não o ajudavam. Ele me olhou e sorriu, e antes que eu tivesse qualquer reação, uma auxiliar de enfermagem retirou-lhe o lençol e cobriu Igor. Ele finalmente pode respirar fundo e adormecer em paz naquela poltrona desaconchegante.

Por um breve momento, três adultos contemplavam emocionados o sono sereno de uma criança. E aquele hospital onde tudo era violento, carente e esquecido pareceu ser tomado por uma luz irresistível, emanada do rosto de um menino que salvara o pai de um linchamento, não sabia onde estava sua mãe e nem dispunha da atenção do mundo, mas parecia falar diretamente com Deus.

Publicado em:Crônicas,Entretenimento,Michelices

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