Um filme é mais interessante se pode ser visto de vários ângulos, todos coerentes. À primeira vista, O Poço acena para uma crítica à desigualdade. Mas qual Desigualdade? A inerente ao Capitalismo? Sim. A inerente ao Socialismo? Também. Mas vai além disso. Vamos a apresentação deste filme… uma jornada de terror.
A história
O filme é uma alegoria, uma narrativa simbólica. O tal “poço” pode ser considerado uma prisão, mas também é um local de expiação e de busca pela dignidade perdida ou pelo significado da vida talvez. Tanto é que o protagonista se mete lá voluntariamente.
Ele quer parar de fumar e ler “Dom Quixote” – leva o livro junto. Cumpre informar que todo prisioneiro – chamemos assim – pode levar um objeto para dentro. Qualquer mesmo, desde uma faca estilo “Ginsu” (os mais velhos entenderão), até uma piscina inflável. Lá dentro eles são dispostos em duplas num cômodo quadrado em cujo centro há um buraco igualmente quadrado, simétrico a outro buraco do mesmo tamanho só que este no teto.
Olhando para cima percebe-se que há cômodos assim a perder de vista para cima e para baixo. Em um dado momento do dia baixa de cima um quadrado que vaza pelos buracos, quadrado este que é a “mesa” de um banquete muitíssimo requintado. O problema é que esta mesa começa no primeiro nível, acima de todos e vai descendo – a mesma mesa com o mesmo banquete – aos outros níveis.
Mas há outro problema: os prisioneiros tem um tempo bem curto para comer e não dispõem nem de pratos nem de talheres. Assim, desde o primeiro nível a comilança tende ao animalesco e assim vai indo até os últimos, sendo que a partir de certo nível lá embaixo a turma passa fome porque obviamente só chegam restos e os recipientes. De mês em mês as duplas e os níveis mudam e pode ser que se passe do nível 143 para o segundo e vice-versa.
Uma luta de classes?
A leitura de que o filme, pelo descrito acima, trata da “luta de classes” (uma discussão que já tratamos na resenha do filme Parasita) pode ser correta mas é incompleta. De início porque todos estão presos e dispõem de um tempo exíguo para comer – sendo igualados por baixo. Em segundo porque todo mês tem mudança de dupla e de nível e, como se depreende, aquele que é oprimido num momento pode passar a opressor num outro. De tal sorte que o comportamento é determinado pelo estrato onde o sujeito se encontra. De novo, uma leitura correta mas incompleta.
Num dado momento, Goreng (o protagonista numa interpretação intensa de Ivan Massagué) desenvolve empatia pelos “oprimidos” e tenta redimi-los, ao mesmo tempo em que mergulha num imenso e irrefreável processo de degradação, como de resto todos ali.
E aí o filme nos remete a diversos paralelos, a começar da “Jornada do Herói”, descrita por Joseph Campbell, ali desenvolvida em seus estágios, desde o chamado para a aventura (ele vai para lá porque quer, lembram?), a entrada no “mundo mágico” (representado pelo “Poço”), o encontro com o “mentor”, as provações, a recompensa e o retorno (retomaremos este ponto).
Ali está o Quixotismo, não só no livro mas na figura de um Sancho Pança representado por um companheiro de luta que tenta ascender na marra e é cruelmente colocado em seu lugar . Por este personagem ser vivido por um ator negro existe o paralelo com a questão da imigração, uma interpretação, perdoem a insistência, correta mas incompleta. Pode-se ver a descida de Dante aos Círculos do Inferno, o Messianismo – que já faria parte do “monomito” da Jornada do Herói citada acima – mas que aparece com mais força num paralelo com o dogma da Transubstanciação.
A Revolução de Goreng
Chega o momento em que Goreng faz a Revolução. Quer mandar uma mensagem aos “De cima” e tenta empreender uma justiçaria a ferro e fogo – praticamente só a ferro – e neste ponto do filme, pode-se ler também a crítica ao Socialismo e ao Pensamento Revolucionário que partiria da tentativa de distribuir riqueza e chegaria na distribuição da miséria.
Ao impedir que os prisioneiros dos níveis mais elevados comam desenfreadamente ele também distribui violência e opressão – ainda que por uma “causa justa”.
É um filme de terror antes de qualquer outra coisa. E, se permitem a redundância, aterroriza. As imagens são frias, cortantes, nojentas, escatológicas, a trilha sonora é feita para ajudar a enlouquecer, enfim, não pensaram exatamente na nossa diversão quando filmaram aquilo.
E o final? Pode haver a recompensa ao herói, fechando sua jornada. Mas pode não haver. Pode ele ter cumprido sua missão. Pode ele não ter cumprido sua missão – que de resto foi dada a ele por ele mesmo. O final é hermético mas ao mesmo tempo faz sentido, desde que se admita vários sentidos. São várias as interpretações e fica ao gosto de quem vê.
Eu mesmo lembrei de Casablanca e não tem quem me tire a impressão deste paralelo na cena final. Certamente você verá e talvez, é quase certo, que pense “Casablanca? Nunca!”. Mas não é o tipo de final que tem uma interpretação errada. No máximo, como a minha, correta. Mas incompleta.
Serviço
- O Poço (El Hoyo), Espanha – 2019 (Suspense, Terror, 94 minutos)
- Direção de Galder Gaztelu-Urrutia
- Roteiro de David Dessola, Pedro Riveiro
- Elenco: Iván Massagué, Zorion Eguileor, Antonia San Juan, Emilio Buale Coka e Alexandra Masangkay
- Sinopse: Em uma espécie de prisão, a comida é distribuída de cima para baixo. Quem está nos andares de cima come à vontade. Quem está embaixo fica com fome. Um prato cheio para uma rebelião.
- Lançamento no Brasil: 20/03/2020. Disponível para assinantes do Netflix.