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A Zebra no Campo

O ano era 1986. Assistia minha primeira Copa com os olhos do entendimento, já que a primeira cronológica, em 78, se resumiu ao jogo Brasil x Argentina, em que, para desespero do meu pai, fosse me revelado a paixão incondicional pela albiceleste, e a segunda, em 82, me desse a noção do que a competição envolvia.

Aos 11 anos, tinha uma turma bem organizada no condomínio onde morava e preenchíamos os espaços entre os jogos da Copa com um embate só nosso: Cada um Por si e Deus Contra Todos. As regras eram bem simples: havia um sorteio, ou seria um “azareio”, para escolher o goleiro e no decorrer do jogo quem fazia o gol escolhia o substituto, quase sempre era o adversário mais habilidoso; por sua vez, o goleiro não poderia deixar a bola passar, sob o risco de continuar no gol; não havia juiz e quem gritava mais e de forma contundente ganhava o lance; cada garoto escolhia uma seleção e a representava; o jogo só terminava quando começava a próxima atração da Copa.

O campo era um misto de grama, buraco, pedras e carros, um alambrado de tela que se fazia de rede, cuja divisão de concreto se fazia de traves e uma caixa de água tipo cisterna de 48 m², que abastecia os 4 blocos do condomínio e que virava campo da mesma forma, e por vezes, agia como zagueiro brucutu à medida que o descuido do chute arrancava a “tampa do dedão”. Como disse, a turma era bem organizada e naquele mês ganhava dois integrantes, dois irmãos que visitavam a tia e que não tinham muita habilidade para o jogo, sendo que o mais velho, de 12 anos, mal sabia o que era a bola, e o mais novo, que parecia ser o mais forte apesar de 3 anos de diferença, conhecia tudo sobre a bola: canela era bola, joelho era bola, tornozelo era bola, barriga era bola e os pobres testículos quase um gol de placa, já a bola, um ornamento ou um capricho do jogo.

A escolha das seleções se dava aos berros, como eram as Bolsas de Valores da década. Alex, um fã incondicional do São Paulo, talvez mais do que nunca, via o Brasil, encabeçado por Careca, como extensão dessa paixão e era o que dava mais trabalho com a óbvia e principal escolha. Eu, não sei o porquê, poderia escolher Argentina mais facilmente (seria o motivo a eterna rivalidade existente?), o resto da turma se gladiava entre as outras mais fortes, Itália, Inglaterra, Alemanha, URSS, Hungria, Uruguai e em determinado momento, Dinamarca.

Em relação aos dois irmãos, ao mais velho, após explicarmos o que era fazer um gol, o princípio de se ter naquele jogo as traves, qual seria a sua função e o fundamental e mais importante, o que era a bola, dava a ele uma seleção mediana ainda não escolhida, Espanha, México, Irlanda do Norte, e ao mais novo, o fundamental era explicar que o hospital mais próximo estava à 12 km e todos queríamos assistir ao próximo jogo da Copa com a saúde intacta.

O mais interessante era que o mais novo sempre escolhia o Afeganistão, seleção que não estava na Copa, e que, assim como ele, mal sabia o que era a bola, senão, a extensão do corpo de algum inimigo. E foi diante dessa escolha que conheci o que era a famosa zebra, pois por mais que esforçássemos ou tivéssemos agilidade suprema para driblar os buracos, o pouco de grama, a caixa d’água, os mais habilidosos e a própria bola ovalada, quase sempre essa sobrava para o Afeganistão, que numa hipotética probabilidade nula acertava a bola e o gol.

Na Copa de 1986 houve duas zebras: a estreante Dinamarca, que se previa como a mais fraca num grupo, que tinha as bicampeãs Alemanha, Uruguai, e a tradicional Escócia, fez encantar com seu jogo total e sair como líder na primeira fase desse, que pela primeira vez obteve a alcunha de Grupo da Morte; e Marrocos, que estava num grupo com a campeã Inglaterra, a Polônia, e Portugal, país esse que perdeu por 3 x 1 o último jogo da primeira fase para os marroquinos, deixando os adversários como líder do grupo e a primeira seleção africana a passar de fase numa Copa do Mundo.

Numa época de futebol arcaico, com campos ruins, violência mundo afora, e quase sem intercâmbio, poderíamos chamar de Zebras essas seleções menos tradicionais, que foram derrotadas nas oitavas de final por Espanha e Alemanha, respectivamente. As Copas seguintes reverenciaram outras, como Camarões em 90, a Coréia do Sul em 2002, muito ajudada pela má arbitragem descarada, e a Costa Rica em 2014.

Contudo, nesse futebol atual, moderno no tratamento fisiológico, tático e técnico, extremamente profissional, e com os principais Treinadores expostos em clubes, em vez das seleções, tendo um intercâmbio globalizado e constante, chamar de zebra o que Marrocos fez em 2022, por exemplo, não atenta para o fato de que situações assim serão mais visíveis, e porque não, normais. A Itália não foi à Copa por uma derrota para a Macedônia do Norte, cujos jogadores jogam nas principais ligas, e da mesma forma, a Alemanha ficou na primeira fase da Copa, jogando um futebol competitivo, mas sem segurar 2 chutes isolados do Japão, cujos principais jogadores estão exatamente na Bundesliga, o principal campeonato alemão.

Por isso, a história de que tem bobo no futebol já reporta ao passado, numa época romântica em que se brincava num péssimo campo entre pedras, grama, carros e uma caixa d’água, em um futebol pouco profissional cujas identidades estavam apenas atreladas às escolas tradicionais e seus campeonatos fechados aos próprios países.

Nessa época, o principal campeonato nacional, o italiano, podia ter em cada time apenas 3 estrangeiros, hoje, um time da Premier League pode ter uma verdadeira seleção mundial e não contar com um único inglês. Assim, acho muito difícil que apareça algum Afeganistão com jogadores talibãs semiprofissionais a espantar o mundo numa Copa, e essa sim, seria uma verdadeira zebra.

A propósito, nunca mais tive contato com o irmão mais novo, Zebra daquele nosso futebol. Quem sabe esse era o grande segredo envolvido naquela “pelada”, e de repente, na próxima, ele apareça como técnico do seu país escolhido, desmentindo o desmentido.  

Publicado em:Crônicas,Entretenimento,Uma Copa Qualquer

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