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O último discurso

A beca não era tão quente e ele não suava lá dentro como imaginava. Até ali corria tudo bem. Faltava uma meia hora para entrarem sob “Pompa e Circunstância” na casa de shows lotada para a formatura. Discretamente abriu mais uma vez o discurso de orador da turma que trazia nas mãos.

Foi quando percebeu que a voz lhe faltou. Mágica e histericamente ele ficou mudo. Nem quando tossia conseguia emitir um ruído. Riu-se por dentro. Não estava nervoso. Não estava feliz. Não sabia como estava, até porque nos últimos anos não soubera como deveria estar.

Achou por bem ir para uma fresta do grande recinto, por onde entrava uma corrente de vento. Havia no local bancos de cimento, como os de praça. Devia ser um fumódromo ou coisa parecida, mas ninguém estava ali. Só ele. Abanou-se com o discurso até que sentiu uma corrente de ar fresco, quase uma rajada. Parou de se abanar e pousou a resma de papel no colo, como que a cuidar daquilo. Ouviu uma voz do seu lado:

“Aproveita que é o último!”

Olhou para o lado e não viu nada nem ninguém…

Foi quando percebeu que aquela voz lhe era muito familiar. Olhou de novo. Um senhor gordalhufo, calvo, de óculos, com uma barba farta, testa suada sentado estava do seu lado no banco, espalhado, meio recostado, as pernas entreabertas, enfim, uma postura desleixada.

Ficaram se entreolhando sem expressão nas faces. Ele assustadíssimo, pensou que além de mudo dera para alucinar. Pensou em procurar um trago. Mas de alguma maneira a expressão respeitosa do outro ao seu lado o acalmava… Perguntou a ele:

“Quanto tempo se passou?”

“De hoje, mais dezenove anos.”

“Então hoje, para você, é dezesseis de dezembro de dois mil e dezoito”

“Até agora era. Aí eu decidi vir dar um pulinho aqui.”

Ficara ali se olhando… e se alguma emoção pudesse ser extraída ali, era a curiosidade.

“Ficou interessante a barba… Nunca imaginei!”

“É boa para esconder as bochechas. Chega numa hora que fica difícil tirar.”

“Entendi. Você engordou mesmo. Muito!”

“Calma aí, você já está gordo… Pesa quanto?”

“Noventa.”

“Hoje tô com cento e dez. Praticamente um quilo por ano.”

“Nossa… nunca imaginei que passaria dos cem! Mas o cabelo tá resistindo. Achei que ia ficar todo careca.”

“Continua a Finasterida. Talvez a coisa mais disciplinada que você fez na vida. Você vai tomar ainda por uns bons anos. Te devo essa!”

E se riram. E fizeram um silêncio meio longo.

“Por que você voltou?”

“Para que você me visse.”

“E por que eu teria que te ver? Qual o problema com você? Tirando os óculos…”

“Teve uns piripaques cardiológicos, nada importante… Os óculos são por conta do glaucoma. Mas não incomodam. Quer usar um pouco?”

“Não, não. Está tudo bem, tá tranquilo.”

Novo silêncio…

“É que… eu sei que eu, quer dizer, a gente, não diz diretamente as coisas, mas se você tem algo a me dizer, eu preferia que não perdesse a viagem, sabe como é né? Daqui a pouco vai acontecer. Não teve jeito, vai acontecer.”

“Jeito teve, porra!” – A frase saiu num tom alto – “Tudo isso em volta. Esse discurso aí no seu colo, essas coisas que você fez usando essa retórica, tudo isso foi para tornar mais suportável isso aí. Foi para te dizer para você mesmo que você era viável, que não era tão burro assim, foi para te inserir nesse meio aí, esse mesmo meio de onde você vai começar a sair agora. Esse foi o jeito que você encontrou para levar tudo isso. Por esta razão eu disse que esse será seu último discurso. Não vai fazer mais sentido precisar disso depois de hoje…”

“Pode ser. Faz sentido. Mas… vai acontecer o quê? Eu vou ser o quê?”

“Vai seguir essa profissão.”

Ele se abanou com o discurso de novo. Não entendia se estava aliviado ou tenso com aquela notícia. Mas resolveu perguntar:

“Mas… se não houver mais essas coisas, como é que eu posso dizer, ‘por fora’, eu vou levando como?”

“Levando.”

“Como?”

“Levando… cacete! Fica tranquilo! Vai ser mais fácil que você pensa.”

“Tá. Posso te perguntar uma coisa, assim, não se ofenda.”

“Vamo lá… pergunte!”

“Para onde eu, quer dizer, você… sei lá, nós fomos nesse tempo?”

“Você fala como? Viajar?”

“É!”

“Você tem passaporte?”

“Não. Calma, eu me formo hoje.” – E viu que ou outro tentava segurar o riso “O que foi? Você também não tem?”

“Eu acho que a resposta é… continuamos não tendo”

“Vixe… então não fomos a lugar nenhum.”

O outro respondia um “não” veemente com a cabeça.

“Tá… eu preferi investir em patrimômio?” – O outro sorriu de forma generosa, sem sarcasmo – “Eu… na sua idade… juntei o quê?”

“Eu prefiro dizer que você vive bem e não passa necessidade. Fique tranquilo quanto a isso.”

Mas ele se inquietava cada vez mais.

“E… quanto a filhos? Não, né?”

“Vão demorar, fique em paz. Vão demorar bem. Mas você vai gostar, vai gostar bem. Você vai ver.”

“E quem sabe eles me colocam no eixo, trazem sentido a isso aqui.”

“Agora você está exagerando. Sentido é uma coisa que você talvez…” – Neste momento ele sentou-se com solenidade no banco, tirou os óculos, secou os olhos e pareceu fixar o olhar ao longe.

“Tá na hora de eu ir embora.”

“Peraí, fica mais, assiste aí!”

“Eu sei o que vai acontecer aí.”

E se olharam demoradamente e sem emoção…

“Antes de eu ir, e de você ir compor a fila de entrada, eu poderia sugerir uma alteração no seu discurso?”

“Claro! Afinal é o último. Que seja nosso!”

Ele trazia uma caneta e estendeu ao formando, advertindo:

“Pega essa citação final e risca, vamos colocar outra. Eu cito e você ouve, depois, se você gostar eu dito e você escreve, beleza?”

“Pode ser…”

“Vamos lá. Eu preciso que você feche os olhos enquanto ouve. Depois eu dito, pode deixar.”

Ele fechou os olhos. O outro começou:

“Nunca fiz por menos, sobretudo depois de determinada época de minha vida, no dia em que entendi que devia tentar tudo… porque só há um homem respeitável: aquele que realiza o máximo do potencial de personalidade que a natureza lhe deu.”

E continuou…

“Que isso seja pouco porque o destino lhe foi parco em dádivas e talentos não o desmerece. O que desmerece um homem é a humildade, é o não-tentar, o não se descobrir, não se pesquisar, o não saber para que veio e que notícias traz. Eu já sei a que vim e o grito o mais alto que for possível. Se não me entenderem… azar o meu algumas vezes e sorte minha outras tantas.”

Ele, após ouvir aquilo, não conseguia dizer nada por conta de um travo na garganta. Só conseguiu após alguns minutos dizer “você pode me ditar isso?” Mas o que ouviu foi um grito:

“Acorda!!! O que você está fazendo aí? Vai começar!!!”

Era o chefe do cerimonial desesperado. Ele olhou no banco, do lado dele não havia mais ninguém. Por um momento lhe adveio um pânico. Como se lembraria da citação?

Foi tomar seu lugar na fila como se fosse cumprir uma sentença. Antes deixou a caneta no banco. Não lhe pertencia, ou pertencia mas não ainda. Ouviu o mestre de cerimônias anunciar a Mesa Solene da cerimônia de Colação de Grau. Automaticamente folheou o discurso. Tomou coragem foi ler a última página, o encerramento, a citação final. Lá estava escrito “Nunca fiz por menos…” e todo o resto que acabara de ouvir. Como se ele tivesse digitado horas antes.

Sentiu finalmente uma calma consoladora. A música soou, a fila começou a andar, os aplausos aumentavam na medida em que ele chegava no pórtico de entrada da plateia. No fundo, pensava que o novo arremate tornava o discurso mais eloquente, e isso o deixava feliz. No fundo, sabia que seria o último.

No fundo, como todos os dias a partir daquele, e pelos próximos dezenove anos, só queria que tudo acabasse bem para poder ir dormir…

Publicado em:Crônicas,Entretenimento,Michelices

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