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A necessária perda do equilíbrio

O filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard dizia que “ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar é se perder”. Era esse nosso medo da postura de Tite antes da Copa. Houve sim, a construção de um elenco, de uma filosofia, de um padrão de jogo, durante as eliminatórias, mas ainda não havia ousadia. Na convocação, com essa trupe de atacantes, com essa molecada que vem encantando a Europa – e o Brasil, no caso do Pedro, já vimos uma ousadia apesar de Dani Alves.

Hoje começamos com onze que nunca haviam jogado juntos. E o fizeram na estreia, contra o adversário mais difícil na primeira fase. Quem diria que Tite viria num 4-3-3, mas até aí nem foi tão ousado assim, dado que os quatro de trás – Danilo, Tiago Silva, Marquinhos e Alex Sandro, por características próprias se mantêm lá atrás durante o jogo. Os dois laterais não “descem”, não vão à linha de fundo. São laterais das antigas, e não “alas” como modernamente são chamados. Uma defesa clássica. Jogar com uma formação defensiva tão ortodoxa pode ser chamada de “ousadia”?

Pode , desde que essa seja uma escolha deliberada e se coloque um contrapeso aos quatro lá atrás posicionados, na forma de um meio campo agressivo , onde a contenção não seja um imperativo.

Tite optou por três atletas pelo meio campo, sendo que apenas Casemiro seria um volante de marcação e destruição de jogadas. A diferença é que Casemiro além de destruir o jogo adversário, começa a reconstruir o nosso. Junto dele, no meio campo, Lucas Paquetá de um lado e Neymar de outro, alimentando o ataque. Lá na frente, três homens de definição: Raphinha pela esquerda, Vinícius Jr (quem diria?) pela direita e Richarlyson pelo meio, como um centroavante agudo. Salta aos olhos a disposição dos jogadores e o respeito deles às suas posições. Disciplina tática hoje em dia é símbolo de começo de vitórias. Era claro até na televisão o posicionamento dos brazucas.

A Sérvia endureceu no primeiro tempo, pouca coisa aconteceu. Mas a proposição do jogo foi toda brasileira. Os sérvios jogavam compactados e até se defenderam com alguma segurança, porém mostrando mais virilidade e lentidão do que técnica. Impressionou que um time que fez uma eliminatória eficiente, vencendo Portugal em Lisboa e mandando o time de Cristiano Ronaldo para repescagem estivesse preso, com uma movimentação mascada e pouco inspirada, chutando uma bola apenas ao gol de Alisson durante todo jogo.

Na segunda etapa, voltando com a mesma escalação, o Brasil foi mais agudo, com bolas na trave e o placar sendo aberto por Richarlisson num cruzamento baixo de Vinícius Jr – cruzamento nada, aquilo foi um chute a gol – que deu rebote para Richarlisson mandar para as redes. Mais um pouco e ele mesmo pega um voleio pouco antes da marca do pênalti e faz um belo gol, talvez o melhor da primeira fase até agora.

Depois Tite ousou de vez. Nada de colocar defensores descansados. Nenhum jogador de contenção foi substituído. Apenas os ofensivos saíram para dar lugar aos meninos e mesmo Gabriel Jesus teve sua milésima chance. Mas apesar dos dois a zero, entraram, além do já citado Gabriel, Martinelli, Antony e Rodrigo, além de Fred, volante de marcação no lugar de Paquetá. Preocupou a saída de Neymar, que chorou no banco após ter saído contundido.

Se ele tiver que sair para uma recuperação, que saia, para poder voltar nas próximas fases. Hoje seu desempenho foi regular, pouco exuberante, algo tenso no começo, mas veio se superando. É simplesmente idiota achar que uma eventual e provisória saída dele agora vai gerar um efeito “7×1”.

Tite terminou um jogo sem trocar nenhum jogador de defesa. E colocou todos os jogadores ofensivos convocados – poderia ter colocado Everton Ribeiro no lugar de Paquetá, mas aí teríamos que pedir as digitais para conferir se aquele era mesmo o gaúcho Adenor Leonardo Bachi.

O Brasil foi Brasil como há muito não era. Soube ousar com o material humano acima da média que tem, e nos impressionou a todos. Vai acontecer sempre? Pode ser, mas com o contrapeso do forte posicionamento de todos. E vai ter momentos em que Tite será aquele que a gente conhece. É preciso que assim seja. A ousadia, como disse o dinamarquês, é uma perda momentânea do equilíbrio, e a ela temos que nos adaptar e até nos planejar.

O Catar está vendo zebras e desfalques, e nossa Seleção está obviamente sujeita a ambos. Há que se ter atenção e sobretudo equilíbrio, seja ele psicológico, físico e tático. Quanto mais durar nosso equilíbrio, mais poderemos perdê-lo momentaneamente.

Publicado em:Crônicas,Entretenimento,Uma Copa Qualquer

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