Menu fechado

Dona Ludmila, Regina e minha Batalha de Plateias

Dona Ludmila… não sei seu sobrenome. Na verdade, pouco sei sobre ela. E ela também sabe pouco sobre mim. Sabe que sou trabalhador… que mantenho um blog, que edito um podcast. Que produzo conteúdo.

Ah sim… importante dizer: a história é real.

Mas voltando à Dona Ludmila, ainda que eu quisesse, pouco saberei dizer sobre ela. Mas posso imaginar algumas coisas sobre Ludmila. Sobre ela, imagino que deve ter uma boa vida financeira, pois mora em um condomínio fechado no Panamby.

E eu me dei ao trabalho de pesquisar… um bom apartamento ali sai por volta de R$ 1,5 milhão…

E agora, vou pedir licença a você, caro leitor, para que permita que eu fale um pouco sobre o bairro do Panamby.

O Panamby,e sua majestosa entrada.
O bairro do Panamby com sua imponente entrada

O Bairro do Panamby

O Panamby – para quem não conhece – é um bairro em uma região nobre de São Paulo. Seu nome é de origem indígena… Algo como “Rio das Borboletas”. E é caracterizado por sua intensa preservação ambiental. E também pela excelência e exclusividade de seus moradores.

O bairro do Panamby é um dos poucos bairros nobres de São Paulo que alia natureza e nobreza
O Panamby e o Burle Marx… exclusividades de São Paulo

No início, o bairro foi cercado por muitas polêmicas, já que ali era uma área de preservação ambiental de resquícios da Mata Atlântica. Um bioma importante do ponto de vista ecológico. Durante as administrações municipais de Jânio Quadros e Luiza Erundina, surgiram burburinhos aqui e ali sobre possíveis fraudes no processo de legalização do projeto de construção.

Aliás, todas as denúncias desapareceram com um acordo que levou à doação de parte do terreno… cerca de 29% da área total. Ali foi edificado um belo parque… o Burle Marx.

Sem dúvida, o Panamby, é um bairro exclusivo, feito para pessoas exclusivas… pessoas de boa estirpe e que têm uma condição sócio-econômica elevada.

Ludmila e o Panamby

Para que não reste dúvida sobre minha deferência sobre Ludmila, acho melhor tratá-la como Dona Ludmila. Afinal, de contas, é uma pessoa especial, uma pessoa que mora em um bairro seleto. Algo bastante exclusivo eu diria…

Tão exclusivo e confortável que consigo imaginar Dona Ludmila neste momento em seu sofá branco – de um couro exclusivo talvez – em seu confortável apartamento que aliás, nunca visitei. Sequer pude chegar próximo. O mais perto que cheguei foi da portaria de seu prédio exclusivo.

Trocamos poucas palavras… um breve recado somente… “apartamento 12, bloco III, obrigada!”. Dona Ludmila não é de muita conversa…

Mas eu tive certeza de sua importância e exclusividade quando avistei seu condomínio no Panamby… a começar pelo rigoroso controle de entrada. Distintos seguranças fazem uma revista completa no seu carro – com direito a abertura de porta-malas e registro biométrico – para garantir a tranquilidade de Dona Ludmila e seus vizinhos.

Tanto rigor e exclusividade trouxeram-me certa insegurança… estaria eu pronto a me encontrar com Dona Ludmila e assim poder atendê-la condignamente?

Nunca saberei… pois ao chegar na portaria de seu luxuoso apartamento, não vi Dona Ludmila… mas sim Regina. Apenas Regina.

A história de Regina

Regina… o fiel braço direito de Dona Ludmila e de origem bem mais humilde. Na verdade. Já está prestando serviços à Dona Ludmila tem alguns anos. E é de confiança. Tanto é que foi a própria Dona Ludmila que pediu a Regina um favor. Um grande favor. Daquele que só pedimos a pessoas de nossa estreita confiança.

Dona Ludmila pediu a Regina que ficasse em seu luxuoso apartamento neste final de semana para que ela (Regina) preparasse o apartamento para seu retorno de uma cansativa viagem ao exterior.

E é claro… Dona Ludmila sempre poderia contar com a fiel e prestativa Regina.

Conheci Regina assim… num informal ‘boa noite’. Ela carregava consigo uma mochila preta de alças puídas. Caberia a mim levar Regina para sua casa. Após a nobre missão de cuidar do belo apartamento de Dona Ludmila, Regina retornaria em segurança para seu lar.

No bairro de Vila Calú, no Jardim Ângela… Extremo Sul de São Paulo.

O Jardim Ângela e Batalha de Platéias

É bem possível que o leitor esteja estranhando a referência do título… mas é que talvez não saiba – como eu não sabia – é que lá no Jardim Ângela… mais especificamente na Vila Calú, há uma rua que homenageia o Monte Citerão, situada na Grécia Central, entre a Beócia e a Ática.

A bela região da Beócia contemplando o Monte Citerão
A bela região da Beócia contemplando o Monte Citerão

E a história nos conta que a região foi palco da tal Batalha de Platéias… Uma batalha decisiva no confronto com os Persas nas chamadas “Guerras Médicas”.

O Monte Citerão é também famoso na mitologia grega… consta que ali foi o lugar onde Édipo (Édipo Rei, escrito por Sófocles) foi abandonado ainda bebê. Ali também temos Héracles (um semiDeus, filho de Acmena e Zeus) caçou e matou o leão de Citerão, temido por pastores da região e também pelo rei Téspio.

Definitivamente, o Monte Citerão, mereceria um lugar no luxuoso bairro do Panamby. Seria um nome digno a qualquer logradouro daquela região. Mas a honraria coube à modesta Vila Calú.

Minha viagem com Regina começou cercada de cuidados… com direito até a uma nova inspeção no carro por parte dos solícitos e firmes seguranças do vistoso condomínio de nossa Dona Ludmila. Certos de que nem eu, nem Regina furtáramos qualquer bem dos nobres moradores da Vila Almafi…

Aliás, cabe dizer… Almafi é uma região de Salerno, na Itália. Foi tombada em 1997 pela UNESCO como patrimônio mundial da humanidade… Nada mais justo e merecido para os nobres moradores que lá habitam o suntuoso condomínio no Panamby.

A Costa Almafitana... Patrimônio mundial da humanidade, segundo a UNESCO.
A bela Costa Almafitana que deu origem ao nome do nobre condomínio do Panamby

Mas… voltando a nossa viagem…

Regina e eu pouco conversamos no início de nossa viagem. Ali, duas pessoas cumprindo seus deveres para com Dona Ludmila… em nossas existências, isso deveria ser suficiente.

Só que se tratava de longa viagem… mais de 40 minutos entre a homenagem à Costa Almafitana e o tributo ao cenário das batalhas de Platéia. Seria natural que algum diálogo existisse.

Descobri que Regina morava ali a menos de dois anos… descobri que Regina enfrentava um verdadeiro périplo, no entorno de nossa represa que também é uma homenagem… desta vez, as aves conhecidas como “Guarás”… São aves típicas da fauna brasileira, mas encontrada em outras localidades como Trinidad & Tobago, Guianas, Colômbia e Venezuela.

Elas são aves que – ao nascerem – têm penugem preta. Mas com seu crescimento, desenvolvem uma bela cor vermelha, muito em parte por conta de sua alimentação, rica em beta-caroteno. Do tupi, temos então o “Guará-Piranga”, que afinal de contas, dá nome a represa construída em 1908 que em 1928 se tornou importante reservatório de água para a região metropolitana de São Paulo.

Regina me disse que são ao menos três conduções de sua casa até o majestoso logradouro do imponente condomínio de Dona Ludmila. Mas que vale a pena… vez ou outra, seu marido (da Regina… não de dona Ludmila) a leva de carro. Então não é tão complicado assim.

A mudança de cenário… da tranquilidade do Panamby para a incerteza do Jardim Ângela

Durante a viagem, percebi uma mudança na paisagem… as áreas de preservação de mata atlântica deram lugar a casas construídas de modo rudimentar, lembrando bastante aqueles puxadinhos que vemos em tantas comunidades. Alguns diriam “favelas”… mas em tempo de politicamente correto, isto seria uma grosseria da minha parte.

Além das favelas, outra mudança foi no asfalto… as ruas largas e bem iluminadas deram lugar a vielas sinuosas e escuras. Trechos esburacados… sinalização escassa… mas eu continuei confiante em atingir a plácida costa grega… e de olho na tela do meu GPS.

Surge uma nova Batalha de Plateias

Após uma viagem longa, chegamos ao destino final para o repouso de Regina, a guerreira. Graças a benevolência e preocupação genuína de Dona Ludmila, Regina pode seguir confortavelmente para seu lar.

Nada aqui lembra o glorioso Monte Citerão, palco da épica batalha de Plateias.
Nada aqui lembra o glorioso Monte Citerão, palco da épica Batalha de Plateias.

E caberia a mim fazer isso com total segurança…

Finalmente subimos pelas ruas de Vila Calú e alcançamos o destino final. Ela desembarcou e desejou boa noite. Fechei as portas e foi neste momento que tudo aconteceu.

Dois homens em uma moto. Na mão de um deles, uma pistola. Uma abordagem rápida e direta. Regina já havia corrido para a porta de sua casa. Havia alcançado a segurança que eu até então lhe proporcionara.

Perdeu! Perdeu, mano!

Tomaram-me a bolsa de dinheiro… pouco mais de cem reais. Nesta hora, lembrei-me de uma lição que meu pai me deu há muitos anos… Dinheiro a gente ganha outro.

Os vitoriosos querem seus espólios

Ao que parece, o homem armado não estava disposto a sair derrotado dali, com apenas alguns poucos trocados. Ele queria a vitória completa… e sangue.

Você tem família? Se tem, aproveita para se despedir porque chegou a tua hora!

Dito isso, ele preparou a arma para me dar um tiro.

E aí, sobravam-me duas opções… a primeira seria aceitar aquele destino. E aguardar pelo pior. A outra seria a fuga, uma pequena chance de escapar àquele destino.

Foi por um momento muito breve que ele se distraiu… não sei dizer o que passou pela minha cabeça. Pensei na minha família… na minha esposa, na minha filha, no meu filho (ou minha filha) que está por vir… meus filhotes peludos… meus pais.

Pensei que tudo poderia acabar ali mesmo. Agi por impulso… o carro estava engatado e ligado. Abri a porta para acertá-los e eles se desequilibraram.

Era minha chance de escapar… e assim comecei minha fuga.

Toda batalha tem seus combates

Ouvi dois estampidos… Tiros. Não sei se em minha direção… mas como um amigo me disse, criminosos assim não atiram para matar, atiram para aleijar. E eu não havia sentido nenhuma dor… e nenhum impacto no carro. Assim, saí o mais rápido possível, acelerando tudo o que o carro poderia me oferecer naquele momento.

Aliás, obrigado ‘Branquinho’… você foi simplesmente sensacional…

Pelo espelho, vi que eles me perseguiam… Eu acelerava e tentava pensar em uma possível rota de fuga…

Virei à esquerda… quero acreditar que foi Deus quem me disse isso em algum momento. Virei à esquerda novamente… Alguns carros à frente… buzinei freneticamente e cortei eles pela contra-mão.

Alguns chamariam isso de “dar um pinote”.

O fim da Batalha

De repente me vi em uma rua movimentada e em seguida, me vi numa rua ainda maior com um semáforo. Peguei o telefone e liguei para a polícia. Sem sucesso. A ligação caiu no meio do atendimento. Não parei até encontrar uma avenida. Não importava a direção… Estava longe do Panamby… longe do Monte Citerão…

Longe de qualquer lugar conhecido. Em relativa segurança…

Durante minha fuga, falei com amigos, pedi ajuda. Chamei a polícia – em vão, aliás – Pedi a Deus… e me lembrei daquela primeira conversão a esquerda… a que provavelmente me salvou… a que me colocou em uma rua mais movimentada.

Deus? Anjo da guarda? Sorte?

Para mim, Deus… e é claro, tempos depois, lembrei de agradecer a Ele… e aos amigos. Que ao menos com palavras de apoio, me ajudaram muito.

Mas… e quanto à Dona Ludmila?

O pior já passou… e mesmo agora, eu não paro de pensar na Dona Ludmila… em seu confortável e seguro apartamento no bairro do Panamby… dentro de um condomínio repleto de seguranças, câmeras, protocolos de entrada e saída…

O que aquela filha da puta estaria fazendo no exato momento em que eu estava em um bairro de periferia, no meio de uma favela, fugindo de bandidos, pensando que talvez eu não fosse mais ver minha família? Assistindo um seriado na TV a cabo premium? Trocando fofocas via redes sociais? Fazendo sexo com o marido?

Tenho que agradecer à Dona Ludmila… pessoas como ela me fazem perceber o quanto somos insignificantes para quem está em sua “ilha de tranquilidade”. Que se acham generosos… desapegados de valores materiais e merecedores de todos os elogios.

Mas que são apenas filhos da puta com algum dinheiro no bolso. E para eles… somos descartáveis. Simples assim. Um serviço a ser utilizado e descartado.

Uma história sobre as tantas Donas Ludmilas que existem por aí…

E esta não é uma história sobre a Dona Ludmila… É uma história sobre as tantas Donas Ludmilas que existem por aí… suas Reginas… e o quanto somos descartáveis para elas nesta vida.

Aliás, em qualquer vida…

Definitivamente, eu não venci a minha batalha de Plateias, no Monte Cíterão. Mas saí de lá vivo… e pude rever minha família.

E para mim… só para mim… ainda que apenas por alguns momentos, esta com certeza, é maior vitória da minha vida.

A parte ruim? Não consigo tirar da minha cabeça aquela imagem da arma apontada para minha cabeça…

Publicado em:Crônicas,Entretenimento,Noites de Insônia

Conheça também...