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A idade, o tempo e a arte

“Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista. O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece.”

Caetano Veloso em “Força estranha”

A arte não envelhece. Talvez algumas Artes permaneçam jovens para sempre, presas a seus tempos. Mas a grande arte não envelhece, isso já virou um lugar-comum. O artista, no entanto, envelhece sim. E para o bem de sua arte deveria saber fazê-lo.

Pedro Almodóvar, no seu mais recente filme “Dor e glória”, mostra que antes de mais nada é preciso compreender o que se passa com o corpo. A velhice é o momento em que entendemos que o corpo nos vence, principalmente com suas dores. Ficar velho é fazer um inventário das dores do corpo e da alma e o diretor não se furta a ele.

Dor e Glória, com Antonio Banderas vivendo Salvador Mallo... um diretor de cinema em declínio que se descobre velho
Dor e Glória, com Antonio Banderas vivendo Salvador Mallo… um diretor de cinema em declínio que se descobre velho

O aparente cinismo dá lugar a uma serenidade, quase uma contemplação de tudo no corpo do velho que está sendo mitigado irremediavelmente e cujos concertos redundarão em cicatrizes que serão troféus de batalhas perdidas. A velhice, enfim, não pode ser domada. A juventude muito menos, porém nesta gostamos e gozamos o atropelo – e Almodóvar se esbaldou na vida e trouxe este desbunde colorido para os seus filmes.

Mas para este, ele trouxe seu envelhecer com tudo o que esta fase traz, para no final se confessar gostando do atropelo, como sempre.

A história do filme

No filme, um velho cineasta – Antonio Banderas melhor que Joaquin Phoenix, mas essa é uma batalha perdida – se apercebe velho. As lembranças da infância são inevitáveis e permeiam suas memórias: ali está a força da Mãe, a descoberta literalmente febril da sexualidade e dos momentos cruciais que forjaram o adulto, este também visto sob a ótica do velho.

Há os aparos de pontas com amigos, amores e momentos que marcaram sua vida, como se a velhice fosse um peso por si só e carregar outros pesos não fosse possível, sendo portanto esses aparos nascidos da necessidade e não de uma escolha. Há a descoberta de sensações, sim a velhice possibilita isso, ainda que sensações por assim dizer ilícitas e extremas.

E gradualmente se forja um artista repaginado pelo tempo. Sem deixar de ser quem era, mas também sem poder ser quem era: eis o aparente conflito que redunda na motivação para se continuar, o que é deixado claro de forma terna na cena final. Se o viço foi se perdendo com o tempo, a força se manteve.

O que move o artista não é o tempo que se passou ou que passará. O artista canta “porque o instante existe” como diria Cecília Meirelles. Cumpre ao velho captar o que a vida inteira lhe deu em um instante, e nele descobrir o que há de novo. E se deixar mover por esta Força, que pode não ser igualmente intensa mas se mostra, mais que nunca, estranha.

Serviço

  • Dor e Glória (Dolor & Glória), Espanha – 2019 (Drama)
  • Direção de Pedro Almodóvar
  • Produção de Agustin Almodóvar
  • Roteiro de Pedro Almodóvar
  • Com Antonio Banderas, Penélope Cruz, Leonardo Sbaraglia, Asier Etxeandia
  • Lançado no Brasil em 13/06/2019; disponível em YouTube Filmes e Google Play (R$ 10,90 locação na data desta publicação)

Post Scriptum

No filme aparece a versão de “A noite de meu bem” para o espanhol, cantada pela costarriquenha Chavela Vargas. Nos créditos aparece só o nome dela e o da versão em espanhol. O nome original da canção e sua autora, Dolores Duran, não foram registrados. Compreensível mas a gente registra aqui.

Publicado em:Opinião,Sem Pipoca

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