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Ela…

Ela gostava de música em inglês, sabia um monte. Eu só sabia em português e cantava embromation. Mas um dia ela disse que Beach Boys era só falsete. Como assim, só falsete? E sugeriu que eu conhecesse The Who e eu pedi para que ela me mostrasse e aí ela me gravou uma fita k7 dos caras que só de mau nunca ouvi.

Ela gostava de basquete da NBA mas não gostava do Larry Bird e não dizia a razão. Eu gostava dos Celtics porque o uniforme era verde como o do Palmeiras, mas achava tudo aquilo muito perfeitinho, me dava um pouco de sono. Mas não gostar de Larry Bird era demais e depois ela disse meio dormindo que a razão era porque ele era branco.

Ela gostava de costela de carneiro mas achava que o hortelã deixava tudo com gosto de chiclete, então tinha que fazer o molho à parte porque a princesa ameaçava pedir pizza, mas meu sogro à época ficava visivelmente transtornado.

Ela falava um português limpinho, foi bem educada, dava quase tesão ouvi-la falar. Mas ela desenhava aspas no ar com a ponta dos dedos, falava “pré – conceito” assim separando com as mãos como se desse dois golpes daqueles de caratê pra quebrar tijolos, um no meio, logo à frente dela quando falava “pré” e outro à direita dela quando falava “conceito”.

Ela usava só maiô apesar de ter um corpo certinho e dizia que biquíni era opressão e o problema era que gostava de usar a palavra “opressão” para um monte de coisa, até para novelas da Globo. Aliás ela gostava de dizer que não sabia quem era Odete Roitman.

Ela implicava que eu gostava de sorvete de banana, dizia que era sorvete de essência de banana. E tomava sorvete de pistache, mas colocava tanta cobertura que só podia ser para disfarçar o gosto daquilo. Eu a desafiava a tomar água com gás após tomar sorvete e ela dizia que era idiota – depois de perder para mim na competição de quem conseguia tomar a garrafinha inteira primeiro.

Ela implicava que eu fazia o sinal da cruz antes de pegar estrada, mas esquecia de fazer quando chegávamos ao destino. Dizia, “não vai agradecer, só sabe pedir?” Aí eu fazia o sinal da cruz de novo.

O bom era quando eu chegava na casa dela, já estando a morar fora, e fazia uma cara bem séria, só para que ela se assustasse com minha seriedade. Depois eu ameaçava um sorriso e ela abria um, imenso, com os dentes à mostra. Aí eu dizia, ao abraçá-la “você riu primeiro!” e ela “não mesmo, foi você, palhacinho!”

Quando a gente terminou, ela disse que me “descurtiu” no momento em que percebeu que eu me recusaria a emagrecer pelo resto da vida, e que a minha companhia só servia para embalar sua solidão. Eu me lembro que perguntei se era embalar no sentido de embrulhar ou embalar no sentido de ninar. Ela perguntou meio brava, “como alguém pode ninar a solidão?”

Não respondi na hora e deixei ao tempo o encargo de mostrar a ela a falta que eu faria. Hoje, mais maduro, ainda confio no tempo. E escuto mais The Who que Beach Boys.

Publicado em:Crônicas,Entretenimento,Michelices

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