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Foi um massacre… em todos os sentidos

Eu confesso que eu gostaria de falar apenas do futebol por aqui. Mas a encrenca ganhou tanta repercussão que é inevitável esquecermos do esporte para focarmos no comportamento. Ontem o Corinthians jogou partida válida pela Copa do Brasil contra o Remo de Belém/PA. Precisando de uma vitória por ao menos 2 gols, o time conseguiu a classificação nos pênaltis. em um jogo sofrido, típico do Corinthians. Na sequência, o técnico Cuca pediu demissão do cargo. E foi um massacre… em todos os sentidos.

Afinal, o que aconteceu?

Não… eu não estou aqui para defender ou atacar o técnico Cuca. Pesa contra ele uma acusação de estupro, em 1987 quando Alex Stival (o Cuca) e mais três então atletas do time do Grêmio – que fazia uma excursão na Suíça – foram detidos após a acusação de terem mantido relações sexuais com uma garota de 13 anos sem consentimento… o que costumamos chamar de estupro.

O caso do jogadores envolvidos na acusação de estupro teve grande repercussão na época

Houve uma investigação, houve uma acusação a todos os envolvidos e houve um julgamento. Tudo isso em Berna, na Suíça. Cuca na ocasião e até hoje nega envolvimento. Em suas palavras, temos a seguinte alegação:

“Eu estava no Grêmio há uns 20 dias. Tenho vaga lembrança de tudo que aconteceu. Na lembrança que tenho, tinha 23 anos, íamos jogar uma partida e pouco antes subiu uma menina para o quarto. O quarto em que eu estava com mais três jogadores era duplo, tinha duas camas. Essa foi minha participação nesse caso”

Alex Stival, o Cuca, agora ex-treinador do Corinthians

Quanto ao julgamento, Cuca e mais dois atletas foram condenados em 1989 a 15 meses de prisão e pagamento de multa de US$ 8 mil. Um quarto atleta também foi condenado, mas como cúmplice, e por esta razão sua pena foi mais branda. De acordo com reportagem do Estadão, Cuca foi enquadrado no antigo artigo 187 do Código Penal da Suíça, que prevê prisão de até cinco anos por envolvimento em um ato sexual com uma criança menor de 16 anos. A Justiça entendeu que não houve violência por parte de Cuca e dos outros jogadores.

Então, como eu disse lá no começo, não vou defendê-lo. Ele cometeu um crime… foi julgado e condenado. Ele nunca chegou a cumprir a pena, sempre alegou inocência e no final das contas, a pena prescreveu em 2004.

A carreira de Cuca

Mesmo após toda polêmica, Cuca prosseguiu com a carreira de jogador e permaneceu no Grêmio até 1989. Foi para o Valladolid na Espanha, tendo retornado ao clube gaúcho em 1990. Chegou a jogar uma partida pela seleção brasileira em 1991. Ele ainda passou por times como Internacional de Porto Alegre, Palmeiras e Santos. Encerrou sua carreira em 1996 atuando pelo Coritiba. Seu título de maior expressão talvez tenha sido a conquista da Copa do Brasil em 1989, pelo Grêmio.

Cuca como treinador

Dois anos depois, após formação acadêmica na área esportiva, Cuca iniciou sua carreira de treinador. Como todo treinador iniciante, começou em times de menor expressão, inicialmente atuando no Uberlândia, Avaí, Brasil de Pelotas, Inter de Limeira, Inter de Lages, Remo e Gama. Em 2002 começou a apresentar bons resultados e com isso passou a comandar times mais expressivos: Criciúma, Paraná e Goiás, onde no Campeonato Brasileiro de 2003 ele levou o time da zona de rebaixamento à classificação para a Copa Sul-Americana.

No comando do Goiás, Cuca teve seu primeiro grande reconhecimento

O bom trabalho no Goiás abriu as portas para os grandes clubes. Atuou no São Paulo, Grêmio e Flamengo, mas como não teve bons resultados acabou saindo dos clubes. Voltou a treinar times mais modestos como Coritiba, São Caetano, mas seguiu apresentando maus resultados. Veio então o Botafogo/RJ e ali em 2007 manteve o time na liderança do Brasileirão em boa parte da competição, mas não conseguiu o título e ainda foi eliminado da Copa Sul-Americana. Ele ainda passou pelo Santos e Fluminense, mas sempre com passagens ruins.

Voltou ao Flamengo em 2009 e ali conquistou seu primeiro título como treinador. Foi campeão carioca. Mesmo com o título, foi demitido ainda no mesmo ano e pouco depois, voltou ao Fluminense que na ocasião amargava um possível rebaixamento. Além de livrar o time do rebaixamento, ele ainda chegou a ser vice-campeão pela Sul-Americana. Tempos depois foi para o Cruzeiro, onde foi campeão mineiro. Em 2011, já no Atlético Mineiro, após um início ruim ele acabou fazendo um bom trabalho no clube e em 2012 foi novamente campeão mineiro. Também foi vice-campeão brasileiro e garantiu classificação na Libertadores. E em 2013 ele foi campeão da Libertadores pelo clube. Foi derrotado no mundial de clubes da FIFA e acabou sendo demitido. No ano seguinte, foi para a China tentar carreira internacional e chegou a vencer a Copa da China com o Shandong Luneng.

É bom lembrar quem em 2013, o portal GE do grupo Globo publicou uma grande reportagem sobre a trajetória do técnico. Uma reportagem elogiosa, mostrando um perfil de superação e de muita luta. E nem uma única menção sequer ao caso de 1987. Aliás, uma reportagem bastante elogiosa à carreira e a pessoa Cuca.

“O treinador do improvável” em reportagem elogiosa de 2013. Nada sobre estupro

O primeiro título nacional

Voltou ao Brasil em 2016 para treinar o Palmeiras e levar o time ao título brasileiro daquele ano. Apesar da conquista, ele pediu para sair do time, retornando ao clube em 2017, desta vez sem tanto destaque. Na ocasião de sua saída, a imprensa novamente exaltou o “homem de família” que optou por cuidar da família à ter vantagens financeiras no clube em que foi campeão. Pelo menos é o que mostrou reportagem do Estadão na época, sendo que – mais uma vez – nenhuma menção ao caso de 1987. Voltou como técnico do Santos em 2018, mas saiu do clube alegando problemas de saúde. Em 2019 voltou ao São Paulo e novamente não teve bons resultados.

Campeão nacional em 2016 pelo Palmeiras e eleito melhor técnico da competição

A consagração veio em 2021

Em 2020 voltou mais uma vez ao Santos e chegou à final da Libertadores, mas foi derrotado pelo bom Palmeiras. Saiu do clube em 2021, após garantir classificação do time para Libertadores do ano seguinte, retornando ao Atlético Mineiro, onde foi campeão brasileiro e na sequência campeão da Copa do Brasil. Ele já havia sido campeão mineiro no mesmo ano. E talvez tenha sido o melhor ano em sua carreira como treinador. Não à toa, foi eleito o melhor treinador no Brasileirão daquele ano. E foi aclamado em verso e prosa não só pela torcida, mas por boa parte da imprensa. Mais uma vez, o portal GE exaltou o técnico após conquista histórica do Atlético.

Com a conquista dos campeonatos Mineiro, Brasileiro e Copa do Brasil em 2021, a consagração

E de novo… nenhuma menção ao caso de 1987. Mas não podemos ser injustos e parciais. É verdade que o mesmo portal GE publicou no começo daquele mesmo ano reportagem sobre o assunto onde a denúncia foi abordada por conta do surgimento da hashtag #CucaNão. Mas ali, tiveram o cuidado de não julgar, mas de informar, respeitando inclusive o direito ao contraditório.

Antes da ida ao Atlético/MG, a história de 1987 ressurgiu

Apenas para concluir a trajetória da carreira do técnico, ele deixou o clube ao final daquele ano vitorioso, voltou na metade do ano seguinte, mas sem o mesmo brilho. E agora em 2023, acertou com o Corinthians em substituição à Fernando Lázaro. Estreou com uma derrota para o Goiás por 3×1 no campeonato brasileiro e depois obteve a classificação do Corinthians para as oitavas-de-final na Copa do Brasil após vitória nos pênaltis. Os jogadores comemoraram a vitória com o técnico, a torcida comemorou a vitória. Mas ainda assim, após o jogo, ele anunciou sua saída do time. Novamente, a imprensa trouxe a notícia, mas desta vez o viés condenatório sobre as acusações de 1987 estavam bem claras nas entrelinhas.

Cuca não resistiu ao cancelamento imposto a ele pelos tribunais virtuais das redes sociais

A cultura tóxica do cancelamento

Fiz questão de apresentar toda a trajetória do treinador para ser justo e lembrar que o tribunal digital e sua régua moral pouco se importou ao longo dos anos com os fatos de 1987. Se realizarmos uma pesquisa na internet sobre o Cuca, antes de toda esta celeuma, quase nada é falado sobre o revés de Berna. Pelo contrário. São muitas reportagens elogiosas e centradas nas suas funções como treinador, respaldando sua qualidade técnica por conta de suas virtudes humanas. Não é curioso?

Em seu pronunciamento após o jogo contra o Remo, Cuca lembrou que ele foi literalmente massacrado pela opinião pública dos tribunais informais digitais:

Foi quase um massacre, um pesadelo. (…) Não quero ser vítima de nada, mas foi a pior coisa que se pode passar, quando invadem a rede social de suas filhas, de sua mulher com ameaças, ofensas descabidas, vou fazer 60 anos, você pesa o que vale a pena e o que não vale. Vale a pena minha família, a coisa mais importante para mim. Não esperava esta avalanche, coisas passadas há muito tempo, fui julgado e punido pela internet, mas não quero entrar em detalhes

Cuca, ao anunciar sua saída do Corinthians

Eu quero ser bem claro sobre a questão do estupro para evitar o MEU cancelamento: não estou defendendo o cidadão Alexi Stival sobre o ocorrido em 1987. Sexo não consentido é estupro e ponto final. Resta saber o que realmente aconteceu naquele quarto de hotel em Berna no já distante ano de 1987. Se ele estava ali, tem sua parcela de culpa e deve ser responsabilizado por isso. Pelo que consta, na ocasião, Cuca e um outro suposto participante não foram reconhecidos pela vítima. No final das contas, foram enquadrados pelo crime de manter relações sexuais com uma menor de 16 anos. Oficialmente esse é o crime. E oficialmente, está prescrito. Mas isso não invalida a condição moral de toda situação.

Cuca tem todo o direito de tentar provar sua inocência. O direito chama isso de Direito ao contraditório e consta que ele contratou advogados para esclarecer o assunto tanto aqui, como na Suíça. Quem sabe ele poderia ter lutado por sua permanência no Corinthians enquanto buscava pela prova de sua inocência. Mas – de novo – a cultura do cancelamento, tóxica por sua natureza de simplesmente condenar sem avaliar, não permitiria isso.

Cuca cancelado pelas réguas morais flexíveis conforme a conveniência de seus utilizadores

Minha crítica está na cultura do cancelamento. Cuca durante anos teve uma carreira vitoriosa como técnico. Foi exaltado em verso e prosa, não só pela torcidas dos times que foram campeões, mas também pela imprensa (especializada e não especializada), pelos seus pares e enfim… agora resolveram que o cara simplesmente não presta e que é um tremendo filho da puta. O problema está na hipocrisia. As pessoas estão usando uma régua moral que ignoraram nos últimos 30 anos. Justificam a mudança de posicionamento como uma evolução do tratamento de questões sensíveis.

Os tribunais digitais que são instalados nas redes sociais instigados por influenciadores e militantes ao invés de tomarem conhecimento dos fatos, de analisar todos os pontos, preferem o caminho mais fácil. O de condenar previamente, massacrar e destruir. E neste caso em especial, as réguas morais daqueles que julgaram e condenaram o Cuca são muito flexíveis, afinal de contas, durante anos, fizeram de conta que nada aconteceu. Curiosamente, por conta de alguém que resolveu que iria destruí-lo, assim foi feito.

Mais uma vez… a história ficou enterrada no limbo durante mais de 30 anos. O Corinthians fez uma avaliação de compliance sobre trazer ou não o treinador. Entenderam que não seria um conflito com suas diretrizes. Apesar de existir uma denúncia, um julgamento e uma condenação, ainda estamos em um país onde há o direito ao contraditório. E existem inconsistências na acusação. Por três vezes a então menina afirmou que ele não participou, apesar de estar lá. Isso não o exime da culpa de estar lá. Mas de novo… ninguém fez nenhuma objeção em quase 30 anos como treinador. E TODOS – TODOS MESMO – o exaltaram em verso e prosa. E mesmo ontem, após a classificação, a torcida o saudou como responsável pela classificação.

Então vamos respeitar as minas se ele for um perdedor, mas vamos desrespeitar as minas se ele for um vencedor? Percebem a hipocrisia de tudo isso?

Publicado em:Opinião,Papéis Avulsos

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