Há duas características definitivas em Indústria Americana que o tornam um documentário interessante: 1) não tem narração em off; 2) foi filmado no calor dos acontecimentos, durante alguns anos, até se chegar à forma apresentada. E ele mostra muito bem que existem faces do capitalismo.
Os fatos iniciais
Indústria Americana (American Factory no orginal) conta a história de uma fábrica chinesa de vidros automotivos que se instala numa cidade do estado de Ohio onde antes havia uma fábrica da General Motors. O conflito não é somente entre o capitalismo americano e o chinês: é entre as duas Culturas, de forma mais ampla.
Dois treinamentos nos são apresentados logo no início: um para os empregados americanos e outro para os empregados chineses que imigraram para os EUA já com emprego garantido, muitos transferidos das unidades da empresa na China.
Os americanos escutam seus futuros patrões dizendo que o horário de almoço será descontado, que os sindicatos não serão bem vindos e que a produtividade será algo inegociável. Já os chineses escutam que podem dizer o que quiserem para as outras pessoas, que podem se vestir como quiserem e que podem até fazer piada com o presidente dos Estados Unidos que não serão presos.
Surgem os primeiros problemas
A fábrica nova começa suas atividades e muitos dos operários americanos, a maioria sem ocupação desde o fechamento da fábrica da GM, percebem que as coisas mudaram. Não só ganham pouco mais da metade do que antes como a natureza e as relações de trabalho mudaram muito. Até sorrir em ambiente de trabalho é mal visto.
Mas muitos se animam com a possibilidade de um novo emprego mas logo percebem que o padrão de vida não será o mesmo com o novo e menor salário. A produtividade não é a mesma. Os encarregados chineses reclamam que os americanos por força de lei podem trabalhar apenas oito horas por dia e tem uma eternidade de dias de folga. Inacreditavelmente todo sábado e domingo.
As diferenças culturais
Num determinado momento a diretoria convida americanos em postos-chave para conhecer as unidades da China. Já na entrada da fábrica há uma cena engraçada pois os coletes de proteção chineses não cabem em alguns americanos com sobrepeso.
Os empregados da filial americana são convidados a participarem da festa de fim de ano da empresa, brega a não mais poder como qualquer festa de firma. Todas as equipes entoam um número musical e eles (os americanos) defendem com a dignidade possível uma dublagem do clássico disco “YMCA”.
A imposição de valores
A forma com que a Empresa repele o Sindicato é um embate que vai sendo por ela vencido aos poucos. Notadamente com a contratação de uma consultoria (americana) especializada em convencer os funcionários de que o Sindicato será uma má ideia.
O filme nos informa via legendas que várias empresas americanas estão recorrendo a este tipo de consultoria para afugentar os sindicatos. Alguns empregados se engajam na campanha pública pela vinda do sindicato – e nisso são ajudados por outros sindicalistas (aparecem ativistas de sindicatos ligados a outras industrias automobilísticas, como a Ford). Obviamente estes empregados são identificados e despedidos.
Uma outra face do capitalismo
No fim, o documentário tem o mérito de nos mostrar a história como ela ocorreu, dado que foi produzido enquanto tudo acontecia, num intervalo de três anos. Contou com a presença de chineses na Equipe de Produção. O presidente e fundador da empresa aparece várias vezes no documentário. Inclusive num depoimento final onde faz um exame de consciência um tanto (mas um tanto muito) sui generis.
Descobrimos ainda que o vice-presidente, cunhado do Fundador, é membro do partido comunista e que no hall de entrada da diretoria na matriz temos as fotos de todos os líderes da China Moderna, desde Mao Tse Tung até o atual Xi Jinping.
São sem dúvida estilos diferentes de realizar o mesmo Capitalismo.
Vencedor do Oscar… com méritos
Marx e Engels apresentam o Capitalismo como uma “unidade contraditória entre fatores dinâmicos e invariabilidade estática, paradoxo de uma sociedade que só pode se reproduzir – e permanecer idêntica – ao custo de um incessante processo de revolução de suas forças produtivas”. A mensagem de “Indústria Americana”, mais que procurar culpados e vítimas, certamente foi confirmar esta premissa. E, ao apresentar os fatos como eles se deram com a crueza da realidade nos leva à reflexão, não a ter que escolher um lado.
Por esta escolha é um bom Documentário. Por esta escolha, de nos instigar e não nos convencer que um lado (seja qual for) é melhor que o outro, mereceu ganhar o Oscar, vencendo o concorrente brasileiro e os outros.
Mas, cá pra nós, bom mesmo é ter conseguido ser um Documentário sem narração em off.
Serviço
- Indústria Americana (American Factory), EUA – 2019 (Documentário, 110 minutos)
- Direção de Steve Bognar, Julia Reichert
- Produção de Jeff Reichert, Julie Parker Benello
- Lançamento no Brasil: 25/01/2019. Disponível para assinantes do Netflix.